Assistindo ao documentário "O retorno de Simone Biles" um turbilhão de memórias povoou minha cabeça.
A primeira delas foi a de que fui uma das vozes a condenar a desistência de Biles nas Olimpíadas de Tokyo em 2020.
As outras memórias foram de minha própria infância, quando fui atleta, inspirada em Nadia Comaneci. Pela TV, descobri que uma pessoa podia fazer mais com o próprio corpo do que voar. O que Nadia fazia era o que eu queria fazer. Então comecei, aos oito anos, a treinar para ser atleta e competir.
Todos os dias eu pegava um ônibus lotado que atravessava a cidade para me deixar no clube onde eu integrava a equipe, a Sogipa, um clube da elite porto-alegrense que só permitia o ingresso de pessoas pobres como eu quando nós representamos a chance de trazer alguma medalha para o clube.
Eu treinava seis horas por dia e meu treino incluía balé, musculação, atletismo e tudo mais que a ginástica artística exigisse. Mais as duas horas de deslocamento, mais a escola. Nas férias escolares, treinávamos nove horas por dia.
Antes que vocês imaginem que eu era uma grande atleta, preciso dizer que na década de 70 e início dos anos 80, as equipes de ginástica artística do Brasil não faziam cócegas no que nossas atletas brasileiras são capazes de fazer hoje, competindo em condições de igualdade com países ricos. O que Dayanne Santos ou Rebeca Andrade fizeram revolucionou a ginástica artística brasileira e nos colocou num patamar antes impensável.
Mesmo assim, cheguei a ser campeã estadual de trave. Não tenho fotos de nenhum treino ou campeonato, pois naquela época era preciso ser rica para ter uma câmera fotográfica e minha mãe não tinha como registrar esses momentos. Mas ela estava em todos eles, torcendo por mim, me incentivando e fazendo sacrifícios para comprar meu primeiro collant e os collants seguintes que usei em minhas competições.
Eu não lembrava de ter sido campeã. Foi encontrando uma carta da Sogipa me parabenizando pelo título de 1981 que recordei essa vitória.
Mas tenho lembranças nítidas de ter muito medo do cavalo, hoje chamado de mesa. Eu tinha medo de cair, de bater a cabeça, de quebrar um braço ou a cabeça.
Meu técnico, um alemão rigoroso chamado Erlon, se irritava profundamente com meus titubeios. Quando ele gritava VAI, eu precisava ir, sem pensar. Eu que engolisse o medo. E eu sempre engolia e IA.
Cresci achando que isso era normal. Engolir o medo. Engolir a dor. Engolir o choro. Engolir a tristeza. E fazer meu trabalho como se esperava que ele fosse feito.
Nunca questionei o comando de fazer o que deveria fazer, a qualquer custo, inclusive e especialmente o de minha saúde mental.
Quando fui agredida por policiais na Ponte Princesa Isabel, uma série de violências se abateu sobre mim que me feriram mais do que o spray de pimenta disparado diretamente em meus olhos.
Deputados de extrema direita foram às redes sociais dizer que eu deveria ter sido atropelada pela viatura policial. Com isso, centenas de ameaças de morte foram feitas a partir de apoiadores dos deputados bolsonaristas. Gleide Angelo, de quem fui professora, carinhosamente me aconselhou a não andar mais de bicicleta, para que eu não sofresse um atentado disfarçado de atropelamento acidental. Assim, fui forçada a abrir mão de um de meus prazeres, que era o de pedalar pela cidade.
Mas a tortura mental não parou por aí. Pouco tempo depois da violência policial, outra violência aconteceu. Uma mulher invadiu meu escritório enquanto eu fazia minha participação semanal do Brasil 247 e começou a gritar. Desesperada, encerrei minha participação para entender o que acontecia. E então me deparei com uma das cenas de maior humilhação de toda minha vida: a mulher gritava para meus assessores, totalmente constrangidos, detalhes de sua vida íntima com o homem com quem eu me relacionava na época.
Parecia que uma avalanche havia engolido minha vida, tudo desmoronando e cada pedaço da minha alma doía.
E então eu ouvia a voz: VAI. E eu ia.
Com tudo o que aconteceu em minha vida, não deixei de trabalhar um único dia. Sem pensar. Engolindo o medo. Engolindo a tristeza. Engolindo a dor. Engolindo a humilhação.
Na minha cabeça, eu não podia me deixar abater, mesmo que estivesse completamente abatida. E assim segui trabalhando ainda mais do que antes.
Engoli tantas coisas que engordei trinta quilos em apenas três anos. E mesmo assim fico feliz porque a Igreja e o Espírito Santo afastaram de mim qualquer tentação de descontar nas drogas, como a bebida, as dores pelas quais eu estava passando.
E então eu vejo essa menina espetacular, uma semi-deusa, de apenas 27 anos, me dando lições que nunca tive e questionando as lições que aprendi na infância. Biles está num patamar de excelência tão extraordinário que ela pôde fazer o que nenhuma atleta antes dela fez. Questionar o sistema que leva as atletas até o esgotamento mental e lhes diz: você somente será uma campeã se for levada até seus limites e derrubá-los.
Simone Biles é a maior atleta de todos os tempos. E no entanto ela desistiu de participar de uma Olimpíada por sentir medo, por sentir que sua cabeça não conseguia, naquele momento. E ao falar de todas as atletas que no passado foram forçadas a seguir, mesmo com medo, mesmo lesionadas, ela nos faz entender que essas mulheres foram torturadas.
Nadia Comaneci, minha musa inspiradora, foi sistematicamente abusada quando ainda era uma criança.
Nem sempre seguir em frente é a alternativa correta. A geração de Biles entendeu isso muito melhor do que a minha.
Posso estar aprendendo isso tardiamente, mas certamente é um aprendizado que não vou esquecer: nunca mais engolir nada. Nem o medo, nem a insegurança, nem a tristeza, nem a dor.
Aos 53 anos, tenho muito orgulho de todo o trabalho que realizei em meu primeiro mandato como vereadora. E agora, caminhando para uma reeleição, espero não ter que passar pelos sofrimentos que passei nesses quase quatro anos. Se eu tiver a oportunidade de ter um segundo mandato, quero fazer diferente.
Trocar o comando do meu técnico dizendo VAI, a qualquer custo, e a rotina de fazer tudo com a rigidez de uma atleta que precisa dominar e sufocar o próprio medo, a própria tristeza, a própria dor pela lição de Biles: é legítimo parar, é legítimo ter medo e sentir dor.
Podemos cair para então nos levantarmos, como o poema antirracista de Maya Angelou - "Still I Rise", apesar de tudo, me levanto - tatuado no peito de Biles, ensina.
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